6 – Ano XCV • N0 46
Diário Oficial do Estado de Pernambuco – Poder Executivo
Recife, 13 de março de 2018
CULTURA
Pelas mãos da parteira Dona
Prazeres, uma multidão
Camila Estephania
Patrimônio Vivo de Pernambuco, Maria dos Prazeres conversa com o portal Cultura.PE sobre os
saberes repassados por sua mãe e que já ajudaram a “colocar no mundo” mais de 5 mil pessoas.
ona Maria dos Prazeres
tem uma interpretação
diferente para o que leu
na Bíblia. “Deus fez a
mulher de uma maneira tão especial, sabia? Primeiro, Ele fez os pássaros, os rios, o mundo todinho, o
homem e só depois disso tudo, fez a
mulher. A mulher não foi feita
diretamente do pó da terra, ela veio
do osso e é por isso que ela é tão
forte”, lembrou ela, religiosa que é,
ao falar de um dos personagens
principais do trabalho que lhe conferiu o título de Patrimônio Vivo de
Pernambuco, em 2017.
Parteira há mais de 60 anos, com
mais de 5 mil partos e nenhum
óbito no currículo, Prazeres tem
propriedade para falar da potência
de um momento que pode ser a
expressão máxima da fortaleza feminina, não só pelo esforço físico,
mas também pelo que a maternidade representa. “Já atendi partos
em que o pai estava aguardando do
lado de fora com uma arma na mão,
pronto para matar todo mundo, em
que a mãe não sabia o que fazer
porque o pai não queria registrar o
filho, em que não havia roupa para
vestir o bebê, em que eu mesma
paguei para a família comer algo”,
descreve ela algumas das experiências que presenciou e também ajudou a solucionar extrapolando, várias vezes, os limites da sua função.
A escolha por um ofício tão difícil,
ela acredita ser consequência de um
plano divino.
A empatia para ajudar tantas
mulheres em um momento determinante talvez seja fruto da sua
própria origem tão desafiadora
quanto a de tantas mães que atendeu. Filha de um breve relacionamento ‘proibido’, Dona Prazeres
teve que ir embora de Natal, onde
nasceu em 1937, com apenas 15
dias de vida, quando seu pai a levou
para Jaboatão dos Guararapes,
onde foi criada pela parteira Dona
Francisca. A medida fez-se necessária para que a mãe biológica não
fosse castigada pela relação não
oficializada com o visitante, um
funcionário da rede ferroviária. E,
assim, Maria dos Prazeres foi registrada como pernambucana. “Quando recebi o prêmio Bertha Lutz, em
2008, eu fui a única do Nordeste e
até disseram: você está com 9 Estados nas suas mãos. É muito, né?
D
Mas eu gosto muito do Nordeste”,
comenta ela, sobre a mistura.
Neta e filha de parteiras, Dona
Francisca havia herdado a tradição
do partejar que, desde a infância,
intrigava Maria dos Prazeres. “Eu
era muito curiosa, queria saber de
tudo. Fui criada numa época de
muita rigidez, quando eu perguntava à minha mãe o que ela fazia,
ela dizia que menina não podia
saber dessas coisas. Havia uma tradição antigamente que, quando o
bebê nascia, queimava-se alfazema. Quando eu sentia o cheiro de
alfazema, já ia para o quarto para
ver o que era. Minha mãe não me
dizia nada, mas eu ficava escutando
tudo o que ela falava com as outras
e prestando atenção”, lembra.
Um dia, surgiu uma emergência
na vizinhança e Dona Francisca não
estava em casa. “Eu fui e fiz tudo do
jeito que eu via minha mãe fazer e
falar. Quando ela chegou em casa,
quis saber onde eu estava. ‘Na casa
de Dona Teté. Peguei a menina’,
respondi. Ela achou uma loucura,
mas viu que saiu tudo bem”, relembra, sobre o primeiro parto em
1958. Depois desse episódio, Dona
Prazeres conquistou a confiança da
mãe e passou a acompanhá-la nos
demais partos. Não satisfeita com
os conhecimentos de parteira tradicional, concluiu o curso de Enfermagem Obstétrica, na Faculdade de
Medicina, em 1971, e fez vários
outros cursos relativos ao partejar,
inclusive a Faculdade de Farmácia,
para aprimorar seu trabalho.
Embora defenda o parto humanizado, ela não insiste para que os
bebês nasçam em domicílio, caso
haja contraindicações ou mesmo se
a mãe simplesmente achar melhor
ir para o hospital. “A mulher deve
fazer o que ela quiser. Ela é a
protagonista do próprio parto. Se
ela quiser parir de cócoras, de
banda, na rede ou pendurada, é ela
quem decide, eu a ajudo a fazer
isso”, explica ela.
A proximidade com o meio
veio com os anos de trabalho também em hospitais. Após formar-se
em Enfermagem Obstétrica, passou 24 anos trabalhando no Real
Hospital Português de Beneficência em Pernambuco. Como aposentada, ainda ganhou mais 10
anos de disponibilidade, quando
trabalhou também na Maternidade
da Encruzilhada. Somente em
2005, parou de trabalhar completamente nas maternidades.
Moradora do Jaboatão até os
dias atuais, Dona Prazeres vive em
uma casa com amplo quintal onde
cultiva plantas como a aroeira,
noni, colônia, jucá, entre outras que
têm princípios medicinais e que são
usadas para auxiliar a recuperação
das mães. “Fiz farmácia pra não fazer besteira e pra saber o que pode
e o que não pode”, esclarece ela,
sobre os cuidados que tomou ao
longo de sua formação como parteira. “Hoje eu não tenho saído tanto para fazer muitos partos, meu trabalho agora é um grupo de pupilas
que estou ensinando detalhes de cada coisa, não só no parto, mas também na gravidez”, fala ela, que fez
seu parto mais recente em 2016. Aos
80 anos, Dona Prazeres já não tem
mais tanta disponibilidade para
acompanhar os partos e seus imprevistos, por isso prefere investir nas
vivências em que repassa o seu conhecimento, como fez durante anos
no projeto Comadre e na Associação
das Parteiras Tradicionais e Hospitalares do Jaboatão dos Guararapes.
FOTO: JAN RIBEIRO/CULTURA-PE
PARA ampliar seus conhecimentos, Dona Prazeres também
se formou em Enfermagem Obstétrica e Farmácia